Diferente da maioria das pessoas que são obrigadas a sair de casa para trabalhar, mantenho o escritório de trabalho na minha. As saídas têm sido pontuais, essencialmente para fazer compras e cuidar dos nossos pequenos. Sempre devidamente protegido com máscara e álcool em gel.
Há duas semanas estive no estabelecimento de um amigo para comprar algumas coisas. Ele, muito atento à gravidade do momento causada pela pandemia, responsavelmente tomou todas as medidas de proteção recomendadas, disponibilizando Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) aos funcionários e álcool em gel na loja para a higienização deles e dos clientes.
Conversa vai, conversa vem, chega na porta um freguês. Cara pelada, sem nenhum tipo de proteção. Meu amigo comerciante pergunta sobre a sua máscara. O sujeito responde que não precisa. Argumento que ele poderia se contaminar e pior, contaminar outras pessoas. Ele diz “isto não vai acontecer porque Deus protege”, paga a conta e vai embora.
Ontem (12), voltei à loja para abastecer a criançada. A prosa é boa. Falávamos justamente da negligência das pessoas em relação à doença. A necessidade de empatia para sermos solidários, quando lá pelas tantas aparece um rapaz. E adivinhe? Sem máscara. Meu amigo perguntou se ele havia esquecido a dita cuja.
A resposta do moço foi insana. “Eu não uso não. Me falaram hoje que a doença acabou. E se não acabou, Deus vai me proteger. E se eu pegar ele vai cuidar de mim. Só ele sabe a hora de cada um”.
Não me contive e perguntei se ele conhecia uma antiga estorinha sobre um naufrágio, em que o sobrevivente, cristão devoto, no meio do mar, clamava para que Deus o ajudasse. Ele disse que não e então pedi para que ele a ouvisse com atenção.
Desesperado, o homem gritava por socorro, quando do nada surgiu uma boia bem ao seu lado. O sujeito, porém, permaneceu batendo pernas e continuou gritando freneticamente. Dalí a pouco, ele vê uma tábua enorme vindo em sua direção, do tamanho e peso suficientes para ele pudesse se salvar. Mas, ainda assim o religioso permaneceu onde estava. Por fim, e não menos surpreendentemente, surge um velho barquinho à sua frente. O homem, cegado pela situação, não consegue ir até a embarcação e acaba morrendo.
Ao chegar no céu, decepcionadíssimo com Deus, perguntou-lhe o porquê de ter sido abandonado por ele naquela prova.
- Eu sempre fui fiel e imaginei que o senhor me livraria daquele mal. Por que me abandonou?
- Meu filho, eu não te abandonei. Te mandei a boia, a tábua e um barco e ainda assim você não percebeu. O que mais você queria que eu fizesse?
A boia, a tábua e o barquinho da estorinha são a máscara, o álcool em gel e as medidas de distanciamento social que precisamos cumprir por nós, mas sobretudo pelos outros.
O mundo não se resume ao nosso próprio umbigo ou crença.
A ciência não pode ser ignorada.
Muito menos a solidariedade.
Deus sabe bem disso.